Música

Música Renascentista: apontamentos sobre Orlandus Lassus


Introdução

"Sem música, a vida seria um erro"

Friedrich Nietzsche

O conhecimento sobre as origens da Música não é exacto, e provavelmente jamais o será, mas a verdade é que o "som" sempre existiu, provocado pelos elementos da natureza. A sua transformação musical deve-se ao Homem, que veicula expressão dos seus sentimentos através da Música. Certamente que não foi um processo forçado, mas natural, assim como diverso. Por este motivo, não podemos considerar morfologicamente a Música universal, mas antes diversa e pluricultural, falando-se de música oriental, africana, judaica, ameríndia. Até na própria Europa a produção musical foi-se alterando e evoluindo constantemente, desde a música popular, até à música erudita, passando pelo medievalismo e pelo período da Renascença.

Deste modo, vemos que a Música é uma criação que retrata toda as sociedades e respectivas mentalidades, acompanhando dinamicamente a evolução social, política e até económica. Na época renascentista é bastante visível esta interacção. A "revolução" que se deu no pensar humano marcou a produção artística de então, ao que o campo musical não ficou indiferente, embora de uma forma muito menos profunda.

O presente trabalho incide sobre a vida e obra de Orlando de Lassus, sendo metodologicamente necessário um olhar sobre o domínio da História e da Música, uma vez que são dois saberes que se complementam na apreensão e compreensão do espírito e expressão deste compositor renascentista. É preciso referir que o nome "Orlando de Lassus" não é consensual, sendo a este compositor atribuídas diversas denominações [Orlando di Lasso, Orlandi di Lassus, Orlande de Lassus, Orlandus Lassus, Roland de Lassus e Roland Delattre]. A escolha pelo primeiro nome deve-se ao facto do compositor assim ter assinado uma carta dirigida ao Duque Wilhelm[1].

A ordem estruturante, que se desenvolverá ao longo do trabalho, desenha uma passagem do geral para o específico. É neste sentido que no início aborda-se "superficialmente" os comportamentos culturais, desde as culturas mais primitivas até aos nossos dias, e em seguida uma análise mais detalhada do período renascentista, especialmente as características da obra musical da época. Restringindo ainda mais o campo de estudo, há um capítulo inteiramente dedicado à biografia e obra de Orlando de Lassus.

Por este motivo, revelou-se uma investigação morosa e complexa, cuja força motora é tentar caracterizar a música renascentista europeia, em particular a obra de Lassus e a forma como ela se interliga com as questões socio-religiosas da sua época, como a reforma protestante.

A visão que aqui é apresentada não é de forma alguma muito rigorosa, isto é, não se pretendia abordar a fundo e pormenorizadamente toda a caracterização da música renascentista uma vez que não estamos no âmbito da História da Música, mas, por outro lado, é bastante importante referenciar aspectos mais técnicos, de modo a se ter conhecimentos base e vitais relativamente à compreensão do compositor em estudo.

Comportamentos culturais

Como já foi referido, a música sempre fez parte da vida socio-cultural do Homem, mas de forma inconstante, assumindo contornos e funções diversas, integradas numa determinada época e mentalidade. Aliás, de acordo com Herzfeld, a música diz respeito apenas ao Homem, porque ela é mais que um simples som: é uma expressão de sentimentos que só ele consegue (re)produzir.
No entanto, a origem da música permance indesvendável e uma constante na história da Humanidade. É desta ânsia de saber que na Pré-História e na Antiguidade ela era remetida para o domínio dos deuses:
- Na antiga Grécia veneravam Hermes como deus da música, mensageiro divino que terá criado o primeiro instrumento musical - a lira.
- No Japão cantavam cânticos à deusa do sol quando ela "amuava" e se escondia na sua gruta. Ainda hoje, os japoneses entoam cantos antigos quando há um eclipse solar.
- Na América do Norte, uma tribo acreditava que a música era uma prenda do deus Tezcathipoca.
- Aos assírios apareceu um deus que os ensinou a ler e a escrever e depois ofereceu-lhes a música.
- Na mitologia germânica, a música é representada por Wodan, protector dos cantores e dos músicos, pois ele também o era.
- Na Idade Média acreditava-se que a música tinha sido criada por Jubal, filho de Caím.

Deste modo, verificamos que em épocas e lugares distintos, a música é explicada em lendas e mitos, estreitamente relacionados com uma divindade. Por esta razão é que se recorria a ela para estabelecer ligação com os deuses; para afastar os espíritos, a doença e a morte; para aumentar a fertilidade dos campos e pedir chuva; para rezar pelos mortos...
A música assumia sobretudo um papel mediador entre o Homem e a divindade, um papel de vitalidade, carácter que se vai esbatendo ao longo dos tempos, assumindo-se novos comportamentos culturais...
Uma visão histórica sobre a Música

Desde os tempos mais primordiais que, em todas as civilizações, a música desempenhou um papel preponderante nas suas sociedades:
- os bardos celtas, os anglo-saxónicos e os skalden escandinavos eram músicos profissionais que entoavam cantos heróicos e possuíam instrumentos próprios.
- Nas tribos africanas e indío-americanas a música reveste-se sobretudo de um cariz mágico, entoada nos seus vários rituais de passagem
- Pela Bíblia sabemos como a música também era importante na civilização hebraica e império egípcio, sempre presente nos momentos de solenidade
- Para os hindús, a música revestia-se de um cariz altamente religioso e compunham canções de culto e de sacrifício
O carácter científico da música só começa a ser verdadeiramente estudado pelos antigos músicos gregos, que a submeteram às leis científicas, certamente influenciados pela sua mentalidade racional. Até então, nenhum povo tinha feito tal estudo.
Esta preocupação revela-nos a importância que a música assume na civilização clássica. Os gregos atribuíam-lhe uma elevada função moral, como modeladora do carácter humano, ou seja, a boa música incitava às boas acções, enquanto que a música má diminuia a força de vontade ou eliminava-a mesmo. O mais curioso é que a doutrina ética da música, que defendia que esta desempenhava um grande papel na educação, manteve-se viva ao longo dos tempos, o que já não aconteceu com a sonoridade clássica, que se perdeu logo na transição cultural para o império romano.

O comportamento cultural que os romanos assumiam para com a música era bastante diferente dos gregos, rompendo por completo a ligação entre ela e a ética, para dar lugar à sensualidade. De facto, a música era um complemento dos divertimentos particulares e públicos, nos banquetes e no circo. Ela era uma forma de atrair e concentrar a vasta população romana nos recintos públicos, assumindo assim um carácter de instrução geral.
À medida que a era cristã vai-se difundindo por toda a Europa, surge uma nova mentalidade cultural e musical, o que levou ao aparecimento de vários confrontos entre os povos já instalados por todo o continente, pois eles eram pagãos, que entoavam cantos heróicos e de louvor a variados deuses. No entanto, com a implantação do cristianismo, instala-se uma nova doutrina religiosa, morrendo assim os velhos deuses e a música que os celebrava, embora não completamente. A tradição oral e os costumes ancestrais permanecem, como é o caso da música da cultura celta, que foi a que melhor se camuflou no cristianismo.

A cultura cristã possuía um vasto património musical, que absorvera sobretudo influências da poesia e da música dos hinos rituais do Próximo Oriente. As melodias tinham sobretudo um cariz religioso, desprovidas de coreografias e de temas comuns, como o trabalho, porque pretendiam exprimir uma submissão humana aos desígnios divinos.

Esta forma de expressão é talvez a que melhor se conservou pelos tempos, em parte devido à força da Igreja que subsiste ainda hoje e à sua tradição. São cantos litúrgicos que estabelecem muitas vezes um diálogo entre um solista e a comunidade, conferindo um sentimento de união. Aliás, a uniformização que o Cristianismo moldou no continente europeu deu origem ao conceito de "música ocidental", que se entende por "música praticada pelos povos cristianizados da Europa em fenómeno de enculturação local, uniformizada a partir do império carolíngio, que evoluiu para uma polifonia culta e artística e que, através de estádios de evolução teórica e formal, e por um processo crescente de elaboração racional paralelo a outros fenómenos estético-culturais, levaria ao aparecimento da harmonia e das grandes formas clássicas e, finalmente, à superação da tonalidade e ao aparecimento das novas linguagens musicais do nosso tempo."[2]

A constância da temática religiosa predominou durante muito tempo, até que surgiu um novo espírito que cantava o vinho, a guerra, os jogos, a natureza e o amor. Ao lado da arte popular, os trovadores medievais entoavam cânticos eruditos que falavam de amor e sensualidade, da beleza natural e da vida quotidiana. Contudo, quando a Peste Negra deflagrou, o tom melancólico de submissão e de misericórdia regressou, e as populações entoavam cantos tristes de flagelação em longas procissões de penitência.
Chegado o Renascimento, nasceu uma nova maneira de ouvir música: o aparecimento da música polifónica conferiu à música uma nova dimensão artística, em que a vida era exaltada e o profano começava a tomar lugar, mas renovou igualmente o espírito religioso. De facto, a Igreja mantém parte da sua influência, mas são sobretudo os protestantes quem preservam o cariz religioso no seu património musical. A Alemanha é um bom exemplo disto, pois nela predominava o luteranismo, não havendo por isso espaço para qualquer forma de arte musical profana.

Durante toda a época moderna e barroca, a música reveste-se de uma grande solenidade. Apesar de haver músicas populares bastante simples, as composições que mais se destacam são de grandes autores como Mozart e Beethoven, que circulavam apenas nos círculos sociais mais restritos.
De facto, a acessibilidade da música e a "forma banal" como actualmente convivemos com ela só se começa a fazer-se notar a partir do século XX, precisamente com o desenvolvimento tecnológico. A invenção de fonogramas e de utensílios da sua reprodução foi um factor decisivo para que a música fosse um bem cada vez mais disponível a todos.

A música renascentista

Como se pretende analisar a obra de Orlando de Lassus, é fundamental que nos debrucemos um pouco mais sobre o período renascentista, embora de forma ligeira, e as suas características na morfologia musical, particularmente na dita música ocidental. Ao contrário de outros domínios intelectuais, tais como a Literatura, Pintura, Geografia ou Arquitectura, a nova mentalidade renascentista não operou uma transformação profunda na Música, havendo somente um desenvolvimento de técnicas e estilos. Eis algumas noções que sustentam esta afirmação:
- algumas teses defendem que a música renasceu no século XV, mas na verdade a Idade Média apresenta diversos estilos musicais, destinados a rituais, trabalhos ou festas;
- outras argumentam que a música ficou mais alegre, mas muitas canções medievais e hinos religiosos expressam igualmente alegria;
- a música renascentista não expressa qualquer retorno às civilizações clássicas na sua morfologia, referindo-se exclusivamente a elas nos textos das canções, precisamente por não haver vestígios da produção musical clássica.

Contexto histórico-cultural

Desde meados do século XIV até meados do século XVI proliferou por toda a Europa uma nova visão do mundo e do Homem, dando-lhes uma maior dimensão e importância ética. Esta nova corrente ideológica, que abraçou o nome de Renascimento[3], teve origem na península itálica e, baseando-se no princípio de reviver, recuperar a arte, culturas e civilizações clássicas, marcou forte e irreversivelmente uma nova era cultural.
O desenvolvimento do interesse pela arte e pelo luxo fez com que o homem renascentista adoptasse uma nova mentalidade, desligada do medo que se viva na Idade Média, procurando antes em viver intensamente a vida terrena, mais material, onde se dá uma importância extraordinária ao Individualismo e se tenta chegar à glória e à fama. A própria preocupação com o Naturalismo, em que a Terra e a Natureza são consideradas elementos simbólicos de perfeição, revela a laicização da mentalidade.

De facto, o Homem passa a ser o centro das atenções e preocupa-se acima de tudo com o seu bem-estar (Antropocentrismo), substituíndo a visão medieval teocêntrica do mundo, onde tudo girava em função de Deus. Assim, começou a haver uma valorização do Humanismo, uma fé no Homem, que adquire uma enorme dignidade ético-filosófica, à semelhança da cultura clássica. Aliás, o Classicismo é uma das características do Renascimento, mas não constituí nenhuma cópia. Pelo contrário, embora o homem renascentista seguisse os ideais clássicos, como o Racionalismo, nunca deixou de criar nem de inovar, o que é óbvio na produção musical.
É inegável o facto de que o Renascimento foi um período de inovação a todos os níveis, entrando em clara ruptura com o pensamento medieval e o seu primado da religião, não só pela crise de mentalidades, tornando a sociedade centrada no Homem e no conhecimento racional, mas igualmente pelo Grande Cisma, que debilitou a Igreja e fomentou o aparecimento de várias reformas religiosas (Luteranismo, Calvinismo, Anglicanismo...), que foram aliadas das crises políticas. Os senhores feudais e os monarcas pretendiam unificar os seus territórios centralizar o seu poder régio, e muitos aproveitaram-se destas mesmas novas igrejas para se separarem do Vaticano e da sua esfera de influência.

A queda de Constatinopla em 1453 fez com que muitos sábios gregos se refugiassem em Itália, onde fomentaram o interesse pela cultura clássica, que acabou por definir novos princípios e pensamentos, que acabaram por dominar todo o Renascimento.
As características da música renascentista

Como é de conhecimento comum, as transformações históricas não são lineares e nem se processam de forma radical. Assim, é compreensível que, inicialmente, a música renascentista se aproximasse do movimento a ela anterior, a Ars Nova, mas com modulações, transposições, alterações cromáticas e microtonais, sob supervisão da Igreja Católica, com o fim de orientar os padres-compositores.
A música renascentista revela um interesse muito mais vivo pelo profano, integrando-se, assim, na corrente de laicização que o Renascimento incentivava, mas é igualmente curioso constatar que as obras de maior destaque foram compostas para a Igreja. A linha que destingue a música profana da sacra é ténue, tanto na estrutura como na própria forma textual. O que define exactamente o cariz sacro ou profano é o conteúdo e a função do reportório.

A mudança mais interessante e relevante foi o estilo de polifónico[4] coral ou policoral, sem acompanhamento de instrumentos, que revela um alto grau de complexidade e sofisticação de combinações harmónicas até 64 vozes, embora denota-se um predomínio melódico do cantus firmus, que é a voz superior, com uma definição harmónica do baixo. A dimensão vertical da música, ou seja, a harmonia, começa a tomar lugar, e é deste ponto que tudo tem de ser combinado entre si e bem meditado. Os acordes de terças e sextas eram usados em tempos fortes, mas os uníssonos, quartas, quintas e oitavas justas começavam e terminavam a música.

A escola franco-flamenga, da região flamenga limítrofe da França, foi o principal centro de difusão deste novo estilo musical imitativo e expressivo, que passa do modal para o tonal.
Paralelamente à afirmação da polifonia, nasce a preocupação de melhorar a precisão da notação musical, porque a existência de várias vozes exigia a revisão dos princípios do passado, tanto a nível acústico, como técnico:
& são feitas experiências acústicas como a multiespacialidade (distribuição do coro em vários lugares na igreja) e efeitos vocais (gritos, resmungos e sons de animais)
& surge a subdivisão binária, abandonando-se as teorias de ritmos medievais e aproveitam-se os ritmos das danças
& a métrica musical passa a ter dois tipos de figuras: as brancas para as notas longas, e as pretas para as curtas, porque o papel de cor branca começou a ser usado, em detrimento do pergaminho
& surge a ideia de compasso
& surge a preocupação de adequar a frase musical à respiração

(continua no link)

http://neh.no.sapo.pt/documentos/musica_renascentista.htm